Hoje, antes de sair para comprar CDs, ouvi minha mãe falando com seu cabelereiro e instruindo-o sobre como maquiá-la quando ela estiver morta. Deu vontade de chorar, mas não tenho o hábito de fazê-lo sozinho.
Ajudarei no preparo do corpo, assim como ela drenou, sozinha, o corpo inchado de meu pai no necrotério do São Lucas. Com a falência renal, a água saía pelos poros da derme. Pagarei-a pelo ato com outro de mesma natureza.
Creio ser o resultado de um amálgama de substâncias químicas que, em progressão de complexidade, geraram o
Homo Sapiens Sapiens. E pensar que tudo isso começou com fogo nuclear: fornalhas gigantes espalhando radiação, calor e elementos químicos pelo universo.
E vejo-me, de dias em dias, como um aglomerado milagroso desses elementos que, a muito custo, adquiriu sensiência e
qualia. Mas não basta nascer: é necessário crescer, amadurecer, reproduzir-se e morrer. Todo esse processo é permeado por uma constância e uma certeza: a quase onipresença da dor e a inevitabilidade da morte.
A felicidade, por sua vez, costuma ser pontual. Existem aqueles, porém, que configuram-se a exceção e sentem-se plenos, realizados e felizes durante boa parte da vida. Através da navalha de Ockham, é mais fácil crer que eles estão iludindo-se ou que estão alheios do pensamento sobre as questões substanciais da existência, do que que eles tenham realmente uma vida muito mais feliz do que triste e que estejam de bem com a vida na maioria dos momentos, isso tudo sem estarem alienados de certas constantes e fatos.
E o que sou? Um momento na história, uma potencial relevância e um nome conhecido por alguns. Serei eu mais? Transcenderei minha morte? Preciso fazê-lo? Devo terminar meu livro e/ou escrever outros? Devo salvar alguém de si mesma ou de outrem? Devo descobrir uma cura? Revolucionar um campo? Desenvolver um método? Ajudar ao próximo, revolucionar algo?
Se sou Marcelo Melo, porque é tão difícil ser-me? Não é na naturalidade que as coisas se baseiam? Não é o orgânico que determina a vida, as constantes físicas, as interações entre a matéria e, pasmem, não dizem que no amor deve-se "deixar acontecer", sem que nada seja sintético ou forçado?
As grandes soluções da ciência se baseiam em observações e premissas muito simples.
Se é o naturalmente concebido o caminho mais simples, como pode ser tão difícil ser eu? Porque, para a maioria de nós, a construção de uma identidade própria e tão penosa e passamos tanto tempo querendo ser outros que conhecemos ou ainda personagens?
Sinto-me como a água da cachoeira que, mesmo sabendo que está tudo certo e em seu lugar ao cair, grita de dor pelo atrito com o ar e, desejosa, gostaria de ser uma planta qualquer.
Como pode o determinado ser tão estranho.
It's a
Mad World, já dizia o
Tears for Fears.
Hoje, sentei-me na grama e percebi, ao olhar para o céu, que a espessa camada de nuvens impedia-me de ver a lua, quase que obscurecendo totalmente seu brilho, e que vi uma única estrela.
Não duas ou três, mas apenas uma única, dentre milhões, em todo o céu noturno observável de onde eu me encontrava. Gostaria de saber de qual astro se trata, mas aposto que é Vênus, dada a intensidade do brilho. Não que Vênus seja uma estrela, mas este não é o ponto.
Lembrei-me imediatamente do Dr. King, que em seu último e emocionante discurso em vida, disse: "...e é nas noites mais escuras que podemos melhor ver as estrelas!" No dia seguinte, ele foi assassinado.
Mas esta também não é a questão.
Devo interpretar a visão desta única estrela, sob a ótica de Martin Luther King Jr, como uma evidência de que, sim, verei as estrelas, mas ainda não está escuro o suficiente?
Minha mãe está morrendo lentamente; tem feito-o isso desde que eu a conheço, com seu comportamento auto-destrutivo e seus infindáveis cigarros. Nunca consegui conviver bem com isso, apesar das tentativas. É duro ver alguém de quem se gosta (ou se tenta gostar, de acordo com a situação) praticar um suicídio a prestações.
E, ultimamente, o processo de decaimento de seu corpo tem acelerado-se, pois a cegueira permanece e a depressão faz com que ela entregue-se cada vez mais, com suas cama, planta, telefone e televisão.
Agora, já descartei a histeria e qualquer acidente vascular cerebral de nota. Estou entre algum acidente vascular ocular ou então um tumor no cérebro. De que adiantou ter tanto trabalho para livrar-se de um câncer na mama esquerda para, com seu estilo de vida, preparar o corpo para outro?
Tudo parece tão inútil.
Não é suficiente?
Minha mesma e problemática mãezinha tenta livrar-se, creio que para ter dias finais de maior paz, de seu amante. Não consegue ou não tem coragem, mas o fato é que está enrolando e, por enquanto, considero-me relativamente seguro. Ainda assim, se mês que vem ela conseguir o dinheiro, sumirá e eu terei que cair fora para qualquer lugar, ao menos por uns tempos. Provavelmente, se ele nos achar, matará a ambos ou, mais provavelmente, matará a mim, que me exponho mais e cuja morte provocaria muito mais sofrimento à ela.
Mas juro, e espero cumprir com este juramento quando e se a hora vier, de morrer em pé, como homem. Tentei e tento viver como um homem de dignidade, farei o possível para morrer de mesma maneira.
E, como previamente dito, não vou entregar meu corpo sem uma boa luta. Minha mente, minhas lembranças e memórias, estas eles não podem tocar. Apenas os que bem quero têm acesso à elas.
E ademais, mandei um e-mail para Lucy Westanza com todas as minhas poesias, meu livro inacabado e várias fotos. Meu trabalho não perecerá comigo.
Não serão estes fatos suficientes para que esteja escuro o bastante para que eu, enfim, possa contemplar as estrelas? O que mais falta? Sob risco de morte, com a mãe piorando a olhos vistos...o que mais, então? A única vantagem de se sofrer em um dado momento é que isto te traz um certo senso de desprendimento.
Wilhelmina está saudável e à salvo, o que pode acontecer para me afetar? Minhas tias morrerem? Meu irmão? Que eu perca uma perna ou seja atropelado, para, meses depois, ser assassinado? É isto, Dr. King? Qual é a porção de dor restante até que eu alcance esta redenção e contemple a imensidão estelar?
O que falta?
Hoje quase caiu outro dente. Essa prática de colá-los com superbonder é perigosa, eu já a avisei, mas ela continua. Vai ver, foi o cianoacrilato que a deixou cega.
Acompanhei a ascenção, aproveitei-a, acompanhei a queda, sofri-a, e agora acompanho a morbidade.
Dente a dente.
Ah, a Sparks deixava tudo mais fácil. As fagulhas de seu apelido eram como estrelas, para que eu admirasse, fosse noite ou dia. A vantagem é que eu não precisava estar mergulhado em escuridão para que elas surgissem, bruxurelantes e também intrigantes, em minha frente.
Nós também nos víamos durante o dia.
Com a Sparks/Wilhelmina Murray, tudo era mais fácil.
No mama, no papa, no whisky soda, no Sparks!
E quem achar esssa frase maluca, assista "Império do Sol", dirigido por
Steven Spielberg.
O livro, devido ao estilo literário de
James Graham Ballard, não é tão tocante. Ainda assim, como todos os livros, mais detalhado e completo que sua adaptação para o cinema. Eu adoro esse filme, desde criança e das sessões da tarde.
A primeira coincidência do dia: abro "O Mundo de Sofia" e encontro, aleatoriamente e ao primeiro olhar, uma citação Shakespeareana que fala sobre como esse mundo é ilusório e que estamos dormindo ou talvez cochilando.
Isso me deixou espantado, pois há poucos dias escrevi coisa parecida aqui. Porque, dentre tantas páginas e parágrafos, logo este, em primeira vista?
E adivinhem quem interpreta o jovem James no filme de 1987?
Christian Bale...
Bruce Wayne...
Batman...
Precido dizer mais alguma coisa? Este foi meu segundo assombro deste dia.
No Sparks...
Senhor King, quanto sofrimento mais até que eu as veja?
Redigido ao som de Coldplay - Sparks
P.S. Obrigado, paredes. Vocês têm me ajudado quando todos os outros falharam ou omitiram-se. Obrigado, Lucy. Você me ajudou também: mesmo que as circunstâncias desta ajuda sejam nebulosas, você o fez. Sou grato a todos.