quarta-feira, 27 de outubro de 2010

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Eu poderia ter escrito por extenso ou me utilizado de qualquer língua a que a internet me desse acesso. Para reforçar meu posicionamento vindouro, nada melhor que os globalmente compreendidos números.

Daqui há um dia, haverá mais um dia de alguma coisa, fato que, de tão corriqueiro, já perde um pouco do brilho antes mesmo de chegar. Poderia ser dia do preá, dia de se comer bolo de banana, dia dos portadores da quase finada Síndrome de Asperger...

Só que se trata do dia Nacional da Psoríase.

Você sabe o que é Psoríase? Não? Então recorra ao Google, pois não estou aqui para dizer o que a Psoríase é ou não é, coisa que muitos podem fazer com bem mais propriedade e respaldo do que eu. Vim aqui falar disto, mas, em verdade, de outras coisas.

Sempre flertei ou vivi com a diferença. Antes de tudo, por agir e, em certo aspecto, ser diferente dos outros ao meu redor. Também, já que o tema começou com doenças, convivi desde cedo com portadores de doenças congênitas ou incuráveis e vivenciei, em parte, o sofrimento e a dor que a falta de perspectiva e, principalmente, o isolamento advindo do preconceito trazem.

Agora, sem pudor algum, utilizarei-me de um argumento de autoridade, por mais naturalmente falacioso que eles sejam: não é fácil ser o outro, o diferente, a porca em meio aos parafusos. Como diria uma passagem do recente The Expendables, "It ain't easy being green.".

E considerem que não tenho doença qualquer que me segregue dos demais. Em meu caso, é uma questão comportamental. Porém, insisto no ponto: será, senhores, que não conseguiremos vencer nossa imaturidade a tempo, antes que nosso senso de exclusão e exclusividade nos segregue a ponto de nos destruirmos?

É sabido que somos naturalmente segregários daqueles que nos são diferentes e gregários àqueles que nos são semelhantes. Isto era necessário em tempos de muito maiores dificuldades práticas, que nossa presente tecnologia tem dirimido. Ainda assim, somos saguis em um carrinho de rolimã que desce ladeira abaixo: temos tecnologia muito mais avançada e letal do que nossa maturidade neuro-emocional nos permite lidar com segurança e prudência e, não fosse isto pouco, nossa fisiologia é a mesma desde antes da última glaciação.

Isso explica, por exemplo, bombas atômicas e cerca de 50% dos cientistas do mundo trabalhando para a indústria de armas, ou seja, para nossa própria destruição e/ou coerção.

Tecnologia demais para maturidade de menos explica muitos paradoxos da nossa contemporaniedade, mas estou desviando-me do ponto que defendo. É iminente que abandonemos nosso preconceito sistêmico contra o diferente em prol da boa convivência em um mundo cada vez mais abarrotado de gente.

Não temos mais hoje a alegria de podermos ir a um local verdadeiramente vazio. Isto está ficando muito raro e, com os apartamentos e elevadores cheios de estranhos que, principalmente nas metrópoles, insistimos em chamar de vizinhos, o não exercício de nossa civilidade e senso de identificação nos afasta, quando não nos causa problemas.

Sejamos honestos: o ser humano é bem problemático. Quase tudo o que construímos de real valor para o engrandecimento de nossa civilização foi feito através de esforços coletivos. Salvo raras exceções, o ser humano mostra-se fraco em sua individualidade. Não que isso implique que não tenhamos demonstrações de fibra e força quando sozinhos, mas essa discussão fica para outro momento.

A regra é que sim, precisamos uns dos outros para nos mantermos emocionalmente estáveis, para construirmos nossas vidas e podermos mergulhar no vazio da morte com um mínimo de dignidade e senso de alguma satisfação em se ter vivido. Aos que por um acaso venham a contestar algo que me parece tão evidente, peço que me indiquem uma criança que tenha trocado as próprias fraldas.

É, gente. Nossos frágeis corpos compostos majoritariamente de tecidos moles não são grande coisa e nossas mentes... essas são tão incoerentes. Rima pobre, mas até que devida.

Dirão, então: "mas nós nos ajudamos! O ser humano é gregário quando convém e nisto mantém-se!"

Concordo. Advogo aqui, então, para que sejamos gregários quando não nos convém. Ou seja, para que não queiramos, desejemos, aplaudamos e louvemos apenas os que consideramos dignos por afinidade. O justo aquiesce os méritos de seu inimigo.

Mas o que diabos isso tudo tem a ver com o dia Nacional da Psoríase?

Porque, gente, toda vez que você faz uma cara de espanto ou desprezo para alguém que a possui, ou ainda para uma menina que resolveu pintar os cabelos de verde ou para um cara que já passou dos vinte e sete mas ainda usa bonés, vocês estão erguendo muros e derrubando pontes.

E este é o caminho mais curto para uma humanidade cada vez mais apática, isolada e indiferente. O conceito de "homem-massa" de Ortega y Gasset revela-se com assustadora pertinência. Não é um mundo assim que eu gostaria de deixar para meus filhos, isto é, se eu tiver a sorte de tê-los.

É da nossa incapacidade de conviver e, principalmente, aprender com o outro que surge o preconceito. Do preconceito, tantas posturas e sentimentos negativos brotam. Essa colheita maldita nos leva a guerras, grupos de extermínio, gulags, Guantanamos, Nanquins, Holocaustos e o que mais as nossas imaturas mentes possam inventar no que concerne o mal e a pusilanimidade.

Ah, mas eu só estou falando dos exageros que nós, homens comuns, não cometemos, não? Afinal, não somos assassinos.

E o que você acha, meu amigo, que está fazendo quando chama um homem maltrapilho e que dorme na rua de mendigo? Falta de adjetivo melhor ou preguiça de dizer "morador de rua"?

Ah, mas é só um mendigo.

Lembremos que existe um nominativo curto, gregário e bem adaptado a qualquer ser humano que você encontre e ache esquisito, sujo, ameaçador ou bizarro:

Pessoa.

Pois é, como você. Que tem problemas e alegrias, carrega o mesmo peso do estar vivo e consciente, sente as mesmas necessidades fisiológicas e vai acabar debaixo da terra também, se tiver sorte de conseguir pagar ou obter uma vaga em um cemitério público.

Perdemos tempo precioso buscando e nos focando no que temos de diferente dos outros, inutilizando esta alteridade ao invés de transformá-la em aprendizado sobre o novo. Sob a égide do que não é interessante, nos abstemos de desenvolver nossos conhecimentos e aprendermos muito, muito mais.

Ou será que diabos alguém aqui acha que aprendemos algo que com aquilo que nos é familiar e conhecido? Aprendemos graças ao desconhecimento, desconhecimento é sinônimo daquilo que ainda nos é obscuro e, sim, devemos nosso crescimento à alteridade!

Como dizem por aí, "a maioria das pessoas prefere ser destruída pelo elogio do que salva pela crítica." Sou testemunha do quão fortes e verdadeiras são essas palavras e minha namorada, que muito me critica e mostra coisas que eu sequer via em mim, lembrando que ela o faz com tanta propriedade justamente por ser diferente, é uma pessoa que me faz crescer absurdamente graças ao que falei acima: não há crescimento sem o desconhecido, sem alteridade.

Esta mesma alteridade que insistimos em afastar por medo.

Este medo que nos paralisa e permite que um filósofo contemporâneo possa nos chamar de gado pensante e estar certo.

Ah, mas eu sou um homem sábio, isento e nobre, estando aqui dando uma lição de moral nos poucos gatos-pingados que lêem este blog, não é?

Não, eu já fui um filho da puta que via o lixeiro do meu prédio pelo olho mágico e dizia para a Nísia: não é ninguém, é só o lixeiro.

Eu já fui um filho da puta que dispensou duas mulheres maravilhosas para mim só porque elas não tinham a quantidade de características desejáveis e semelhantes que eu achava necessárias; porque eu era idiota demais para não perceber o quanto poderia aprender com elas.

Foi bom passar uns anos namorando o maldito espelho.

Hoje, posso dizer que melhorei, mas ainda erro seriamente vez ou outra. Só que, chega de falar de mim, voltemos ao ponto:

Nossa dificuldade imanente em convivermos, e lembrem que convivência não é tolerância, com o diferente vai nos empurrar para dois caminhos prováveis: apatia geral ou conflito. Saberemos quando a população aumentar a ponto de simplesmente não pudermos sequer fingir que podemos nos ignorar.

Apesar de tanta negatividade, eu acredito na espécie. Quero crer que, um dia, as Ciências Sociais dirão que o conceito de "homem-invisível e/ou homem-função" não serão mais necessários, assim como espero que um dia o Ortega y Gasset não precise mais estar certo.

Portanto, finalizo estes já longos desabafo e teorização da seguinte maneira:

Se você não quer namorar alguém porque o acha esquisito demais para você sem sequer conhecê-lo.

Se você se revolta com a realidade porque o seu atual parceiro/a não é como você queria, e talvez por isso até fantasie com alguém mais adequado, quando não vai às vias-de-fato e o/a trai.

Se você se satisfaz em se referir a um desconhecido apenas pelo nome que designa sua função ou nicho social.

Se você torce o nariz porque o cara que passou ao seu lado fede ou se veste mal de acordo com o que você acha certo e bonito no mundo.

Se alguém discorda de você e por isso você o deseja queimando no inferno só pela discórdia, sem considerar a essência da opinião.

Se você prefere enfiar sua cabeça em um buraco, rodeando-se de gente que diz que és lindo/a e que está tudo perfeito contigo.

Se você acha que já há gente demais no mundo e que, por isso, um a menos não vai fazer diferença.

Não seja mais um filho da puta.

Este foi um texto de um ex-filho da puta lato sensu e que agora, a muito custo, faz o possível para ser um filho da puta strictu sensu. Eu me tornei uma pessoa menos odiosa e odiada, você também pode. Ambos temos 10 dedos, ambos sofremos e choramos, ambos sorrimos: ambos podemos pois ambos somos Homo sapiens sapiens.

Ninguém disse que será fácil, mas quando nascemos, já optamos invonluntariamente pelo desconforto. Agora, só voltando aos úteros de nossas mães, coisa que é estritamente impossível e, segundo a psicanálise, procuramos em nossas parcerias afetivas.

Vamos à luta, mas sem armas, hm?


P.S. Eu namoro uma pessoa que por um acaso tem psoríase e não tenho nenhuma vergonha dela. Não namoro uma psoriática, sequer hoje acho que namoro uma mulher ou uma natalense, nordestina ou indie. Repito: namoro uma pessoa, um ser humano. Ser este do qual me orgulho e cujos defeitos eu assumo.

Gosto muito da pessoa que ela é.

Quem sabe se enxergarmos mais pessoas e menos adjetivos, talvez vivamos em um lugar melhor.

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